quarta-feira, julho 09, 2003



Actualmente na nossa sociedade, existe nas pessoas uma tendência, muitas vezes sublinhada pela imprensa e pelos outros meios de comunicação, para procurarem a derrota. A partir do meu próprio campo de actividade, conheço numerosos casos dessa automutilação que faz com que indivíduos de valor reduzam por sua própria escolha as suas possibilidades de evolução. Existe uma categoria inteira de pessoas que ao longo de toda a vida querem tão obstinadamente ser doentes que acabam por já não saber distinguir a doença da saúde. Esta forma de invalidez voluntária é relativamente transparente quanto às suas intenções. A partir da ideia, decerto exacta, de que a nossa sociedade moderna exige uma eficácia a cem por cento dos seus cidadãos, nasce em numerosos membros dessa sociedade, um medo do fracasso perfeitamente compreensível. Pretendendo-se com tantos ou tantos por cento de enfermidade, os cidadãos obtêm uma espécie de seguro contra o fracasso e este seguro, para muitas mais pessoas do que costumamos imaginar, passa a ser a única coisa que torna suportável a vida.

Só que o facto de nos afundarmos não passa de uma etapa, de uma fase de paragem no caminho. O fenómeno mais notável é a vontade crescente de buscarmos a derrota mais total, a enfermidade mais completa, a degradação mais profunda. depois de ter examinado a questão, dando-lhes todas as voltas possíveis, cheguei à seguinte conclusão que não passa de uma série de perguntas: não teremos experimentado demasiadas vezes a miséria da vitória, do sucesso e da glória para continuarmos a ter a força de imaginar atingir a salvação por essas vias? O que é a salvação? É, julgo eu, o processo através do qual conseguirmos de repente suportar a ideia de que esta vida é vazia, fria, indiferente, um nada. Se, como decerto devemos fazer, partirmos da hipótese segundo a qual a faculdade de suportar este conhecimento, precioso entre todos, é indispensável ao homem, então põe-se uma outra questão: Em que momentos seremos mais acessíveis à salvação? Teremos a ousadia de responder: a vitória não nos traz qualquer apoio firme, a glória é para nós um deserto onde nos morre a alma? Todos nos perguntamos: Em que pensam os outros homens quando estão sozinhos? Se pensam como nós, por que é então que nunca o sabemos? Talvez saibamos todos a mesma coisa sem nos atrevermos a revelá-la uns aos outros? Talvez nos perguntemos: Onde está o amigo que procuro em todo o lado? Talvez o encontremos, todos nós, quando amarfanhados e em sangue o descobrirmos deitado, amarfanhado e em sangue, também ele, no fundo desse abismo para onde nos impele o nosso desespero? Mais fundo, mais fundo ainda, grita-nos o nosso desejo e por isso não interrompemos a nossa queda. Não é por amarmos a queda que caímos, não é por gostarmos de rastejar na noite que rastejamos, não é por amarmos a morte que a procuramos, porque a morte, nós sabemo-lo bem, não passa da punição por termos vivido. Talvez, simplesmente, esperemos descobrir nas trevas uma luz que a própria luz nos recusa, talvez esperemos descobrir na solidão um amigo que a comunidade dos outros nos nega.

Será isto o que nos está a acontecer? Não sei, porque se vale deveras a pena sabê-lo, são só suposições o que nos resta.


in As Sete Pragas do Casamento, Stig Dagerman




salamandrine 21:57



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